Kenneth Boyd, condenado à morte nos estados da Carolina do Norte e do Sul, foi esta madrugada o milionésimo ser humano a ser institucionalmente
assassinado pelos EUA, desde que o
United States Supreme Court, em 1976, reintroduziu a possibilidade da pena de morte, numa controversa decisão que marcou um enorme retrocesso civilizacional.
Tal possibilidade foi acolhida em 38 dos 50 estados que integram a potência dominante. Uma clara maioria, portanto.
E em pleno sec. XXI, quando, em
1829, Victor Hugo, talvez o mais egrégio filho da França
(e um dos meus heróis) , escreveu
O último dia de um condenado, impressionante, belíssimo e imperdível libelo contra a pena de morte
.Confesso que, por mais que admire ou tenha amizade por alguém que por acaso defenda a pena de morte, ou a liberalização do aborto, não consigo evitar um involuntário aperto no estômago e uma certa condescedência íntima, fundada numa pontinha de desprezo por essa pessoa.
Sinto, e penso, que lhe falta um pouco de humanidade...
Nas ideias que defende existe um défice de civilidade, que reputo frustrante.
Reconheço que a maior parte dos defensores da liberalização do aborto são movidos por um impulso generoso. Trata-se, porém, de uma generosidade obtusa, que defende uma parte - a mãe -, inegavelmente fraca
(numa grande parte das vezes), contra outra, ainda mais fraca e sempre sem alternativas - o bébé.
Ora, a civilização caracteriza-se, entre outras coisas admiráveis, por promover e consagrar mecanismos de defesa dos mais fracos contra os mais fortes - e os nascituros são, de todos, os mais fracos e os que carecem de maior protecção.
É essa a génese da Justiça, enquanto instituição humana que visa resolver os conflitos dos cidadãos e garantir a defesa dos princípios e bens que considera mais importantes
(a liberdade, a vida e integridade física, a dignidade, a igualdade de oportunidades, a propriedade, etc.).Criando regras objectivas e iguais para todos, provendo um árbitro isento e impedindo a justiça privada, as sociedades afastam a
lei da selva (do mais forte) e tentam assegurar a todos os necessários meios de defesa.
Tais regras, porém, têm de ser eminentemente justas, sendo que podemos aferir a justiça e a civilidade de uma sociedade pelo tipo de regras que a regem e pela forma como tais regras são aplicadas.
Uma sociedade tem, naturalmente, o dever de se proteger a si própria, afastando os que atentam contra ela e garantindo a inviolabilidade e a respeitabilidade da lei. Por isso penaliza os crimes.
Porém, a sociedade não se pode
vingar, sob pena de se tornar ela própria uma
parte num conflito interno
(nos conflitos externos é parte, mas para os resolver temos a diplomacia, e a guerra).
Ao
vingar-se, a sociedade agacha-se, perde o bom senso e a objectividade, e reduz-se à contingência humana do simples indivíduo. Sendo melhor não o torna melhor. Torna-se, com ele, e como ele, extremamente limitada.
É por isso que, amando e admirando profundamente os E.U.A.
e reconhecendo que prefiro o respectivo império a qualquer outro
(tremo só de pensar em ver a China ainda totaliária como potência dominante),Não posso deixar de afirmar que os nossos generosos
polícias de além Atlântico são, ainda, meio selvagens.
Com efeito:
- Admitem a pena de morte;
- Não censuram veementemente
(penalmente) o aborto;
- Aceitam o livre porte de armas, admitindo a
auto-defesa, verdadeira génese da justiça privada.
(Aliás, numa tendência extremamente preocupante, a pouco e pouco a guerra começa a ser literalmente feita por empresas privadas, como aconteceu recentemente no Iraque.)