terça-feira, novembro 08, 2005

A «Visita»...

Os ensinamentos daquela que julgo ser a mais recente, e mais nova*, Doutora da Igreja – Sta. Teresa de Lisieux, também conhecida, por aqueles mais dados a lamechices beatas por «Sta. Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face» - , são admiráveis, e merecem reflexão.
P.e.
«… Estamos num século de invenções. Agora já não se tem a maçada de subir os degraus de uma escada; em casa dos ricos o ascensor substitui-a vantajosamente. Eu também queria encontrar um ascensor que me elevasse até Jesus, porque sou demasiado pequena para subir a rude escada da perfeição. Então, procurei nos Livros Sagrados a indicação do ascensor — objecto do meu desejo —, e li as estas palavras saídas da boca da Sabedoria eterna: Se alguém for pequenino, venha a mim. Aproximei-me, adivinhando que tinha encontrado o que procurava, e querendo saber, ó meu Deus!, o que faríeis ao pequenino que respondesse ao vosso apelo. Continuei as minhas buscas, e eis o que encontrei: — Como uma mãe acaricia o seu filho, assim eu vos consolarei; levar-vos-ei ao colo e embalar-vos-ei nos meus joelhos! Ah!, nunca palavras tão ternas e tão melodiosas me vieram alegrar a alma. O ascensor que me há-de elevar até ao Céu, são os vossos braços, ó Jesus! Para isso não tenho necessidade de crescer; pelo contrário, é preciso que eu permaneça pequena, e que me torne cada vez mais pequena. Ó meu Deus! excedestes a minha esperança, e eu quero cantar as vossas misericórdias.» (História de uma Alma)

«… Tu fazes-me pensar numa criancinha que começa a erguer-se de pé, mas que ainda não sabe caminhar. Querendo a todo o custo subir ao alto duma escada para estar com a sua mamã, levanta o pézito para subir o primeiro degrau. Mas é um esforço inútil! Cai uma e outra vez, sem chegar a avançar. Muito bem: aceita ser essa criança. Pela prática de todas as virtudes, levanta sempre o teu pézito para subires a escada da santidade. Não conseguirás subir o primeiro degrau sequer. Mas o que Deus apenas te pede é a tua boa vontade. Do alto da escada Ele olha-te com amor. Rapidamente vencido pelos teus inúteis esforços, Ele-mesmo baixará e tomando-te nos seus braços, levar-te-á para sempre para o seu reino, onde jamais te afastarás d’Ele. Mas se não chegares a levantar o teu pézito Ele deixar-te-á muito tempo na terra.» (Caderno Vermelho, escrito pela Ir. Maria da Trindade)

«O que agrada mais a Deus é que Ele me vê, amando a minha pequenez e a minha pobreza, a esperança cega que eu tenho na Sua misericórdia» (Carta 197)

«
Ó meu Deus! Trindade Bem-aventurada!
(…)Desejo cumprir plenamente a vossa vontade, e chegar ao grau de glória que me preparastes no vosso Reino; numa palavra, desejo ser santa. Mas conheço a minha impotência, e peço-Vos, ó meu Deus, que sejais Vós mesmo a minha Santidade. Já que Vós me amastes até me dardes o vosso Filho único para ser o meu Salvador e o meu Esposo, os tesouros infinitos dos seus méritos são meus: ofereço-Vo-los com alegria, suplicando-Vos que não olheis para mim senão através da Face de Jesus e no seu Coração ardente de Amor
.» (Oração 6: 1-2)


«Como ter medo d’Aquele que Se deixa prender por um cabelo que esvoaça no nosso pescoço!... Saibamos pois conservar prisioneiro este Deus que Se faz mendigo do nosso amor. Ao dizer-nos que um só cabelo pode realizar este prodígio, mostra-nos que as mais pequenas acções feitas por amor são as que Lhe cativam o coração... Ah! se fosse preciso fazer grandes coisas, quanto seríamos para lastimar?... Mas como somos felizes visto que Jesus se deixa prender pelas mais pequeninas...» (Carta 191)


«Sei que é preciso ser muito puro para aparecer diante de Deus de toda a Santidade, mas também sei que o Senhor é infinitamente justo e esta justiça que assusta tantas almas é a razão da minha alegria e confiança. […] Espero tanto da justiça de Deus como da sua misericórdia. É porque é justo que “Ele é compassivo e cheio de doçura, lento para a ira e cheio de misericórdia. Porque conhece a nossa fragilidade, lembra-Se de que não somos senão barro. Como um pai sente ternura pelos filhos, assim o Senhor tem compaixão de nós” [...] Aqui tendes, meu Irmão, o que penso sobre a justiça de Deus, o meu caminho é todo de confiança e de amor, não compreendo as almas que têm medo de um Amigo tão terno. Às vezes quando leio certos tratados espirituais em que a perfeição é apresentada através de inúmeras dificuldades, rodeada por uma quantidade de ilusões, a minha pobre inteligência cansa-se muito depressa, fecho o sábio livro que me quebra a cabeça e me seca o coração e pego na Sagrada Escritura. Então tudo me parece luminoso, uma só palavra revela à minha alma horizontes infinitos, a perfeição parece-me fácil, vejo que basta reconhecer o próprio nada e abandonar-se como uma criança nos braços de Deus. Deixando às almas grandes, às grandes inteligências, os belos livros que não posso compreender, e ainda menos pôr em prática, regozijo-me por ser pequenina visto que só as crianças e os que se assemelharem a elas serão admitidas ao banquete celestial. Sinto-me muito feliz por haver várias moradas no reino de Deus, porque se houvesse apenas aquela cuja descrição e caminho me parecem incompreensíveis, não poderia lá entrar.» (Carta 226, de 9.5.1897, ao P. Roulland).

«Para mim, a oração é um surgir do coração, um olhar simples para o céu. É um grito de gratidão e amor no meio das dificuldades como no meio das alegrias. É algo de grande, de sobrenatural que dilata a alma e me une a Jesus(História de uma Alma)

A definição de oração de Teresa na sua «História de uma Alma», que foi oficialmente acolhida no Catecismo da ICAR, é original em relação àquelas já conhecidas ou propostas pela teologia espiritual. A definição da Doutora Carmelita não assenta num método, numa lógica, não decorre do raciocínio escolástico, do desenvolvimento intelectual ou, sequer (como redutoramente imaginam alguns), de uma experiência puramente emocional. Eivada de poesia é, muito mais, uma experiência, melhor, uma vivência ontológica plena

Teresa ensina a pensar com o coração. A sua oração decorre da experiência da intimidade com Deus e é assim que ela reza. Para ela a oração não carece de palavras. Tem e decorre da energia gerada pelo amor e pela intimidade com Deus. O cultivo desta intimidade com Deus é a sua única ocupação.

A Graça, a bondade amorosa de Deus, ressoa em Teresa, que experimentou e viveu uma relação de amor, que foi evoluindo e que induziu o seu crescimento espiritual.

A jovem Doutora da Igreja celebra o amor do Criador e não se cansa de aludir aos «dons totalmente gratuitos de Jesus», e de como «só a Sua Misericórdia fez nascer tudo o que é bom nela». Os seus escritos incentivam-nos a abrirmo-nos à grandeza da Graça divina, para que esta entre em nós e conduza as nossas vidas.

É que nós somos e permanecemos livres e a Graça não nos é imposta.

Se nos centrarmos em nós próprios, se egoisticamente nos fecharmos aos outros, se arrogantemente contarmos só connosco próprios, permaneceremos finitos, ligados a um nada afastado de Deus.

Se, pelo contrário, quisermos e nos abrirmos a Jesus, Ele toma parte nas nossas vidas, não só através das nossas qualidades positivas mas também e, quiçá, principalmente, através da nossa fragilidade.

O infinito transubstancía a nossa finitude. Com a Graça somos levados, ou elevados, a uma santidade que participa da verdadeira vida de Deus. A Graça santificante, mais do que assistência à nossa pobre humanidade contingente, estabelece uma nova relação entre Deus e cada um de nós. É o poder transformante de Deus afectando a nossa própria substância.

Cheios de Graça, não ficamos, apenas, melhor do que éramos – como se Deus acrescentasse alguma bondade natural àquela que já tínhamos. Pela Graça, Deus muda a qualidade real do que somos na nossa humanidade.

A graça é a própria comunicação de Deus à nossa natureza humana. Ora, não existe comunicação num só sentido.

Gratuita como é, a Graça esbarra no autismo da nossa própria importância e auto-suficiência e é Teresa quem nos ensina o valor da pequenez e das nossas próprias imperfeições e insuficiências.
O amor de Deus e a Sua Graça chegam mais facilmente aos recônditos lugares onde reside a nossa pequenez, porque aí nós não os bloqueamos com a nossa própria importância arrogante e autosuficiente.

A pequenez de Teresa só o é relativamente à imensidade de Deus. Em comparação com a grandeza divina, a criatura reconhece a respectiva insignificância. No entanto, Teresa tinha plena consciência de que era muito, muito mais do que nada. Sucede que o muito mais era de Deus.

Agora digam-me, o que é que isto tudo tem que ver com o culto serôdio, alienante, mágico - a raiar a heresia -, das respectivas relíquias, que mais não são do que os restos apodrecidos da Santa, ou melhor, «da santinha».

Se algum valor tivessem, se de alguma vida fossem veículo, tais restos, ou relíquias, animar-se-iam de indignação e escândalo com o uso que deles é feito para a alienação das consciências e para o efectivo afastamento das pessoas em relação Àquele que se tornou próximo e nos chama sem mediações - Jesus.

*P.S. Maria Francisca Teresa Martin - Thérèse de Lisieux, Carmelita, francesa, nasceu em 1873 e morreu em 1897. Canonizada em 1925, foi proclamada Doutora da Igreja em 1997.