sexta-feira, agosto 04, 2006

«O cemitério

Não existe nada de mais deprimente do que o Algarve urbano em dia de chuva e granizo. É preciso notar aqui que o Algarve urbano, com a sua arquitectura de pato-bravo e as suas colmeias de férias, é hoje, praticamente, todo o Algarve de barlavento a sotavento e sem distinção de paisagem, tirando as manchas de areia e mar e os campos de golfe verdes, que dão a ilusão de outro país, mais rico e mais ordenado, mais inteligente do que este.(…)
Apesar do mau tempo de Carnaval, as felizes famílias portuguesas estão na rua, engarrafando as estradas e os parques.
Porquê?
Porque não têm casas, nem lareiras, nem jardins, nem bibliotecas, nem as ocupações materiais e espirituais das classes possidentes ou dos povos europeus superiores.
Os portugueses têm casas desconfortáveis e sem aquecimento ou com um aquecimento insuficiente por causa das contas de electricidade, e por isso reúnem-se em lugares tão confortáveis como as praças de «fast-food» dos centros comerciais ou as tendas de Big Macs e Pizzas americanas congeladas. Enchem os cinemas e os hipermercados em dias de folga, entopem os «shoppings» e todos os lugares abrigadosque os façam esquecer uma vida entorpecida e pobre. Os portugueses vivem mal, e este viver mal não é exclusivo da falta de dinheiro. Vivem mal, porque não sabem, não saberiam viver melhor. Não se educaram para saber viver melhor. O dinheiro novo aprendeu a esquiar e a escorregar em desportos radicais, aprendeu a rota das Caraíbas e do Nordeste do Brasil mas, no que toca a preenchimento dos vazios mentais , os portugueses não aprenderam mais do que isto: a sua vida gira em volta do carro, da televisão e do telemóvel como formas de comunicação privilegiadas e arquivo de afectos e memórias. Falam uns com os outros da bicha da bilheteira de cinema para a do supermercado – onde é que estás, eu estou aqui e vou paraaí não tarda nada –e filmam-se e e fotografam-se uns aos outros fazendo estas coisas. O telemóvel é um dos modos de ilustração do horror da natureza ao vácuo.
Todos estes lugares prescindem do silêncio. E a sul,onde a praia convidaria a escutar a água e a chuva, tudo o que os portugueses fazem é encafuar-se no ruído para afugentar a solidão. O exemplo do Algarve reforça a ideia deste horror contemporâneo, mas existem outros exemplos do modo como tratamos o país e a sua beleza. Na costa alentejana, a tão gabada e cobiçada costa alentejana, montes foram comprados por gente da cidade, com um gosto mais apurado e um sentido ecológico mínimo que os leva a não estragar o que já está tão estragado. Num destes lugares da costa, onde passei um fim-de-semana, um lugar desabrido e com uma praia selvagem a desenhá-lo, resolvi ir darum passeio à beira-mar. Como estava sol, sentei-me nas dunas, a ler um livro e a apanhar os raios de luz. Com o cheiro, logo me dei conta do lugar onde estava. Era uma espécie de casa de banho pública, com papel higiénico sujo a esvoaçar, detritos, dejectos, lixo. Latas de cerveja vazias, garrafas de plástico, os preservativos do costume e mais lixo naufragado que a maré dava à costa. As praias portuguesas estão carregadas, e o Inverno serve para apreciar a noção que temos delas: uma lixeira a céu aberto. Nas praias geladas do Mar do Norte, ou da Cornualha, onde as pessoas passeiam ao fim-de-semana apesar da temperatura glacial, nunca vi um papel, um bocadinho de matéria descartável, objectos, matéria orgânica. E quando se passeia os cães, apanha-se a consequência do cão com um saquinho. A praia portuguesa de norte a sul, serve de estrumeira e não de lugar de contemplação. (…) Uma das características nacionais que abomino, esta é a que abomino mais. Mas, pensando bem, a ausência de consciência cívica que molda estes gestos é a mesma que construiu os prédios altos da Praia da Rocha, que era uma das mais belas praias do mundo, é a que fez os condomínios privados, que semeou pelo país fora o retalho como actividade desportiva e a megalomania materialista e consumista como substituição da espiritualidade ou de um sentido de pertença a uma comunidade. Os portugueses comovem-se muito com o que dizem de Portugal e dos portugueses (veja-se o sucesso do certeiro livro de José Gil), ou indignam-se muito, o que é uma forma de comoção, mas a sua comoção e indignação nunca se transformam em vontade actividade mudar o que quer que seja. As autarquias, o poder local, que sem tino e com toda a corrupção e ganância do mundo produziram este trabalho e esta mentalidade caótica reflectida na paisagem, são o espelho da pequena burguesia nacional, no gosto e na devoção pela autoridade e o desvio de autoridade como meio de enganar o sistema. A trapaça é a nossa mais verdadeira e lamentável vocação. Enganar o Estado, enganar o poder, como exemplo sublime de sobrevivência. E nada fica nas cabeças para além do que se consome no instante. Nada fica para além do gosto da mentira. Auto-iludimo-nos tanto nestes últimos anos que acreditamos que mudámos, mas, quando olho em volta e vejo este sul tão assassinado, esta vida tão miserável que levamos, pergunto-me se mudámos assim tanto. O se chegámos a mudar. E aqui teríamos de pensar que a democracia e a liberdade nos deviam ter ensinado a cuidar melhor daquilo que temos, e é nosso e não apenas de um grupo político-social de potentados. A democracia devolveu-nos o país e nós matámo-lo e matámo-nos com o gozo de achar que nos elevámos fazendo isto. No fundo de nós, sabemos que falhámos, e que chegou a hora de pagar o falhanço colectivo. E esta factura não é de Sócrates nem de Santana Lopes, retratos do que somos. Esta factura é nossa. Sem sol, com chuva e granizo este país parece-se muito com um cemitério.»

Clara Ferreira Alves, in Única 12/2/2005 pg. 88