«Da teologia à geopolítica»
Vale a pena ler este artigo de José Medeiros Ferreira, no DN, que reproduzo infra:
«A viagem de Bento XVI à Turquia laica, maometana e cristã ortodoxa merece uma reflexão, tantos foram os problemas desencontrados que suscitou. O facto de o Papa ter apoiado a entrada da Turquia de Kemal Attaturk na União Europeia obnubilou a restante ordem de trabalhos que o levou à antiga Constantinopla ortodoxa do cisma que dividiu as obediências entre os discípulos de Pedro e os de seu irmão André, ou seja, entre Roma e Bizâncio.
O roteiro desse diálogo no contexto ecuménico tem as suas particularidades. Enquanto as igrejas protestantes são dispersas, descentralizadas e pouco hierarquizadas, embora com muitos meios de evangelização, a Igreja Ortodoxa tem hierarquia e uma geopolítica que segue o percurso do desmembramento do Império Otomano, a partir de Moscovo , desde a Grécia até à Sérvia e à Bulgária. Enquanto a Igreja Católica sofria com a divisão da Europa em Estados, a Ortodoxa afirmava-se pela independência desses Estados do domínio imperial otomano dos tempos do califado de Istambul. Só, porém, com o nacionalismo árabe se transforma a cabeça desse império na República da Turquia, com Mustafá Kemal, que logo ultrapassa uma das divisões do continente europeu mudando o alfabeto de caracteres árabes para latinos e laicizando o Estado. Deste ponto de vista, a Turquia é bem mais ocidental do que a peregrinação conventual que liga a Rússia até à península balcânica, através da Bíblia em alfabeto de caracteres cirílicos, uma das subtis fronteiras intereuropeias de que ninguém quer falar. Nas sociedades livres não há línguas sagradas.
Bento XVI ensaia os seus primeiros passos como chefe da Igreja Católica fora da cadeira de Pedro em Roma, e parece reservar sempre uma surpresa sobre o seu pensamento nessas ocasiões. Em Ratisbona foi o discurso sobre a espada de Maomé, em contraste com o que escrevera nos anos 90 quando afirmou: "Em meu juízo, seria de renunciar completamente à expressão fundamentalismo islâmico." Agora foi a defesa da entrada de Ancara na União Europeia, correndo, aparentemente, o risco de perder argumentos para a sua tese de uma Europa de matriz e valores cristãos. Escrevi "aparentemente" porque não creio que o Papa venha a renunciar a esse seu cromossoma da construção europeia. Daí também a ênfase no diálogo com o Patriarca Bartolomeu I da Igreja Ortodoxa de Constantinopla. A Turquia laica entrará na UE com o seu mosaico religioso e com o Bispo de Roma e o Patriarca de Constantinopla em oração conjunta pelos fiéis cristãos.
Esta é a geostratégia religiosa de Bento XVI num quadro político de alianças do Vaticano pouco conhecido e estudado na sua vertente temporal.Nesta vertente é indiscutível ter tido o Papa João Paulo II uma decisiva influência na liberalização dos países da Europa de Leste, desde a Hungria à Polónia, numa actuação da Igreja Católica convergente com os objectivos ocidentais da Guerra Fria.
Desse ponto de vista o Vaticano foi bem mais eficaz do que todas as emissões de rádio do mundo ocidental.
Essa aliança transatlântica não impediu Roma de manter uma árdua disputa com o protestantismo anglo-saxónico no resto do mundo, sobretudo na América Latina e em África. Basta seguir os caminhos desse sucessor de Pedro para se entender essa diversificação de objectivos na acção diplomática e pastoral do Vaticano. Foi então que dispararam na imprensa os escândalos sobre os comportamentos sexuais de muitos padres nos EUA.
Agora é o Papa Bento XVI que se aproxima dos propósitos transatlânticos com o seu recente proselitismo antimaometano do discurso de Ratisbona e o seu apoio à entrada da Turquia na União Europeia. Este apoio à entrada da Turquia na UE deixará muito cristão a fazer o sinal da cruz, muitos filhos da integração europeia, nascida com o Tratado de Roma, desorientados em Bruxelas, mas coloca o Vaticano numa excelente posição internacional e, na questão turca, bem mais flexível do que a Igreja Ortodoxa, sitiada em Chipre e em Istambul e à procura de um lugar na Rússia e para a Rússia.
Assim como João Paulo II, depois de ajudar a combater o comunismo nos países da Europa de Leste, se dedicou às suas viagens de proselitismo pastoral, assim Bento XVI irá retomar outros temas para a sua acção geopolítica. Quem sabe se a promoção da globalização solidária? Teria o apoio de muitos alternativos. Quem sabe se a procura de um papel mais activo no Médio Oriente? Talvez Blair espere que sim.»
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