sexta-feira, dezembro 02, 2005

Os bons selvagens...

Kenneth Boyd, condenado à morte nos estados da Carolina do Norte e do Sul, foi esta madrugada o milionésimo ser humano a ser institucionalmente assassinado pelos EUA, desde que o United States Supreme Court, em 1976, reintroduziu a possibilidade da pena de morte, numa controversa decisão que marcou um enorme retrocesso civilizacional.

Tal possibilidade foi acolhida em 38 dos 50 estados que integram a potência dominante. Uma clara maioria, portanto.

E em pleno sec. XXI, quando, em 1829, Victor Hugo, talvez o mais egrégio filho da França (e um dos meus heróis) , escreveu O último dia de um condenado, impressionante, belíssimo e imperdível libelo contra a pena de morte.

Confesso que, por mais que admire ou tenha amizade por alguém que por acaso defenda a pena de morte, ou a liberalização do aborto, não consigo evitar um involuntário aperto no estômago e uma certa condescedência íntima, fundada numa pontinha de desprezo por essa pessoa.

Sinto, e penso, que lhe falta um pouco de humanidade...

Nas ideias que defende existe um défice de civilidade, que reputo frustrante.

Reconheço que a maior parte dos defensores da liberalização do aborto são movidos por um impulso generoso. Trata-se, porém, de uma generosidade obtusa, que defende uma parte - a mãe -, inegavelmente fraca (numa grande parte das vezes), contra outra, ainda mais fraca e sempre sem alternativas - o bébé.

Ora, a civilização caracteriza-se, entre outras coisas admiráveis, por promover e consagrar mecanismos de defesa dos mais fracos contra os mais fortes - e os nascituros são, de todos, os mais fracos e os que carecem de maior protecção.

É essa a génese da Justiça, enquanto instituição humana que visa resolver os conflitos dos cidadãos e garantir a defesa dos princípios e bens que considera mais importantes (a liberdade, a vida e integridade física, a dignidade, a igualdade de oportunidades, a propriedade, etc.).

Criando regras objectivas e iguais para todos, provendo um árbitro isento e impedindo a justiça privada, as sociedades afastam a lei da selva (do mais forte) e tentam assegurar a todos os necessários meios de defesa.

Tais regras, porém, têm de ser eminentemente justas, sendo que podemos aferir a justiça e a civilidade de uma sociedade pelo tipo de regras que a regem e pela forma como tais regras são aplicadas.

Uma sociedade tem, naturalmente, o dever de se proteger a si própria, afastando os que atentam contra ela e garantindo a inviolabilidade e a respeitabilidade da lei. Por isso penaliza os crimes.

Porém, a sociedade não se pode vingar, sob pena de se tornar ela própria uma parte num conflito interno (nos conflitos externos é parte, mas para os resolver temos a diplomacia, e a guerra).

Ao vingar-se, a sociedade agacha-se, perde o bom senso e a objectividade, e reduz-se à contingência humana do simples indivíduo. Sendo melhor não o torna melhor. Torna-se, com ele, e como ele, extremamente limitada.

É por isso que, amando e admirando profundamente os E.U.A.
e reconhecendo que prefiro o respectivo império a qualquer outro (tremo só de pensar em ver a China ainda totaliária como potência dominante),
Não posso deixar de afirmar que os nossos generosos polícias de além Atlântico são, ainda, meio selvagens.

Com efeito:
- Admitem a pena de morte;
- Não censuram veementemente (penalmente) o aborto;
- Aceitam o livre porte de armas, admitindo a auto-defesa, verdadeira génese da justiça privada.

(Aliás, numa tendência extremamente preocupante, a pouco e pouco a guerra começa a ser literalmente feita por empresas privadas, como aconteceu recentemente no Iraque.)

2 Comments:

At 15 dezembro, 2005 09:35, Anonymous Anónimo said...

Quanto à questão do aborto estou 100% de acordo consigo.
Quanto à questão da pena de morte já discordo consigo. E até acho de um certo mau gosto pôr as duas questões ao mesmo nivel.
Matar um nascituro(por via do aborto) é a mesma coisa que matar assassino(por via da pena de morte) 100% responsável pelo acto que praticou???
Despreza, por igual, tanto um defensor do aborto como um defensor da pena de morte???

 
At 22 dezembro, 2005 17:22, Blogger Pedro Cruz said...

Caro(a) anónimo(a)
Por favor, não destaque um sentimento que não gosto de alimentar...
Quem defende essas ideias de morte, que considero pouco civilizadas, merece respeito e fá-lo normalmente eivado de genuína preocupação e generosidade, ou perturbado por acontecimentos ou circunstâncias que lhe tolhem a objectividade.
Quem sou eu para julgar os outros?
Creio que a resposta à pergunta que me coloca passa, no fundo, por esta mesma questão - quem somos nós para julgar os outros ?
Como referi temos - individual e colectivamente - o direito (e por vezes o dever) de nos defendermos.
Isso implica, em certas circunstâncias, repelir as agressões e organizar um edifício
adequado para fazer o julgamento dos actos considerados ilícitos, sancionando os seus autores na medida estritamente necessária para restabelecer a ordem e a força vinculadora da lei. Que tal seja feito à custa de bens importantes (v.g. a liberdade, que exterioriza a dignidade do ser humano) é uma coisa, que tal passe pela aniquilação da própria pessoa é outra totalmente diferente [de notar que o objecto do julgamento são os actos e não a pessoa do(s) respectivo(s) agente(s)].
Subjacente à ideia de pena de morte existe sempre uma perspectiva castigadora e retributiva que pressupõe que quem a aplica, a própria sociedade, está acima e tem maior dignidade (ontológica) do que a pessoa humana.
O Cristianismo, o Humanismo e o Humanismo Cristão, que reivindico como matriz do meu pensamento, não concebem a dignidade do grupo acima da dignidade do indivíduo.
O grupo - sociedade, comunidade, nação, país, etc. - pode até ter uma identidade própria, ao ponto de lhe ser(em) reconhecido(s) certo(s) carisma(s), mas continua sendo sempre um grupo de pessoas e são estas que conferem dignidade e humanidade ao grupo. Ele não pode, por isso, estar acima delas, ao ponto de as poder aniquilar, sem ser em adequada legítima defesa.
Como se dizia no Renascimento «o homem é a medida de todas as coisas».
Acredito nisso, no que toca à «economia da cidade».
Santo Natal

 

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